segunda-feira, 12 de julho de 2010
Uma lula no meu sapato
Quem superestima etiqueta jamais sentiu fome, não teve infância ou nasceu em outro planeta.
Tem gente que vive preocupada com aparências. Como sentar, evitar vexames, fazer caras e bocas, caçar flashes e holofotes. Gente que te cumprimenta por obrigação, beija com o rosto, dá a mão como se fosse cristal ( tem coisa pior do que aperto de mão mole?. Não olha no olho, o sorriso é travado, contido (isso quando sorri), as mãos entrelaçadas vivem pousadas no colo. Educadas, tão educadas, que mesmo apertadas nem ao toalete vão. Eu hein? tô fora!
Abomino pessoas estereotipadas, artificiais. Gente que vai à festa e se embriaga com um dedal de vinho, engole o caroço de azeitona com receio de alguém vê-la cuspir. Que de segundo em segundo roça o guardanapo na boca limpando sujeiras invisíveis. Gente que come bacalhau e, por "educação", guarda os incômodos fiapos nos dentes até o amanhecer. Não é melhor ir ao banheiro e fazer o serviço? Gente que nos recrimina por não sabermos escolher qual dos "trocentos" talheres postados à mesa deverão ser usados.
Em qual taça se bebe a água, o vinho, o licor, o refri. Gente que desossa um galeto a garfo e faca com o mindinho levantado. Não seria melhor dar uma de Dom joão VI e comer com as mãos? Tô de saco cheio de gente assim.
Longe de mim pregar a má educação. Quando vejo pessoas "etiquetadas", dizendo que nunca cometeram uma gafe, dá vontade de colocá-las frente a frente com uma costeleta de porco, uma tainha frita, um caranguejo toc-toc, uma sopa de tutano e vê-las tentando comer sem sujar as mãos. Só por telepatia!
Tudo isso pra narrar um fato ocorrido dia desses num convescote social onde eu e um grupo ruidoso de amigos nos divertíamos a valer. Na mesa ao lado, uma madame empoada, gestual contido, sussurrava para seu séquito, recriminando nossos modos, olhar crítico, severo, inquisidor.
Que diabos ela queria? que nos comportássemos como frades trapistas? Que comêssemos um minúsculo risole a prestação? Que sorvêssemos nosso malte gota a gota até transmutar-se em água? Isso lá é educação? A cada gargalhada, cada "égua" proferido, lá vinha um comentário desabonador.
"Como é que pode, um rapaz tão letrado..."
"Me larga de mão"
Se o episódio tivesse ocorrido a décadas atrás, minha atitude seria outra. Mas como agora sou civilizado, resolvi fazer ouvidos de mercador. Fui levando na maciota até a chegada da segunda leva de acepipes. Mini-caçarolas de massa folheada entremeada de mariscos. Petisco de fazer goumert Brilat- Savarin levantar do túmulo. Como reza a etiqueta, postaram os guardanapos no colo, os cotovelos colados rente ao corpo e mãos à obra. Isso, se não houvesse a lei de Murphy. Aquela que, se algo tiver que dar errado, dará. E deu!
Nossas mesas estavam perigosamente próximas, minhas pernas displicentemente cruzadas e aconteceu. Ao trinchar o mini-empadão, uma porção substancial desprendeu-se do talher e em câmera lenta, surreal, como os filmes de Godard, estatelou-se emporcalhando o bico do meu sapato. Foi a glória.
Os amigos ululavam, chamando vingança, sangue. Adivinhem o que o cronista fez? Escarcéu, gritaria, baixaria... Nem pensar! como manda o figurino, sussurrei-lhe ao pé do ouvido:
"Senhora, tem uma lula no meu sapato. O que é que eu faço?"
Catatônica, ela fingia não ouvir.
Tem certas coisas, episódios, que as cerimonialistas, "expert" em etiqueta, não percebem, não sacam, jamais irão prever. Essa é uma delas. Fui até ao banheiro limpei o meu pisante e passei o resto da noite falando alto, comendo muito e achando graça.
Como dizia a minha avó: "Etiqueta, só de roupa. E olhe lá!
Um dia ainda consigo escrever assim... uma das minhas crônicas favoritas, escrita por um escritor paraense.
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